terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Ensaio II


O funeral da professora Formosinha foi o meu primeiro contato com a morte.
A Cada vez em que eu me lembro desta história ele é um pouco diferente. Não me recordo de nada de maneira muito exata, a não ser do algodão nas narinas dela.
Nos tempos de escola, eu era ainda mais fútil do que sou hoje e igualmente irresponsável.
Naquele dia, me levantei como sempre de mais uma insônia, de mais uma noite em que dormira arrastando correntes.
Depois de me levantar sem estar totalmente desperto e passar pelo tradicional processo de deszumbização matinal– banho, café e ovos mexidos –, tomei o rumo da escola.
Eu quase sempre caminhava sozinho. Passava por vários conhecidos que fariam o mesmo caminho que eu. Assim como hoje, eu não suportava nem a mim mesmo. Por isso, os cumprimentava e seguia só. Os amigos nunca me fizeram falta. Só me interessava, naqueles dias, a vida fora de mim – o cinema, as histórias em quadrinho e filmes pornográficos. O mais interessante é que eu já nem achava que a minha vida era de verdade; e se um dia havia sido, deixara de ser quando deixei a fazenda de meu pai para morar na cidade com minha mãe. “Tudo bem, pensava, afinal há pessoas que se negam muito mais do que eu”.
Bom, messe dia a minha caminhada não foi diferente, topei com a mesma galeria de figuras que povoaram aquelas mesmas ruas no dia anterior. Fui tragado por aquele fluxo até a escola. No fim de do caminho, só o mesmo portão cor de chumbo.
Eu não me misturava, mas naquele dia eu parecia mais sem sintonia do que de costume. Alguém me tocou no braço e pediu para eu tirar os fones de ouvido. Sorri de modo repentino, e me virei para encarar a cara da cidadã. Era uma menina loura e muito sardentinha. A cara dela parecia um documento atestando que algo original acontecera naquele lugar onde nunca acontece nada.
- O que aconteceu?
- Morreu a professora Formosinha.
Até que eu soube digerir bem a coisa na minha cabeça. Não me mostrei pesaroso, não mudei de feições, nem disfarcei minha cara de paisagem. Fiquei só com uma dor nos lábios rachados de frio que começaram a doer. Eu não sei bem por que até hoje, mas sangraram muito naquele instante. Senti-me tão ridículo que não pude me conter de meter a boca na manga da camisa e sujá-la.

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